sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Nostalgia

Bastou abrir o portão para que o garoto visse sua infância inteira na forma de um adolescente. O amigo de anos atrás sorriu ao vê-lo e logo, como numa apunhalada da nostalgia, foi perguntado sobre seu bem-estar. Recebeu o apelido de leal não só por se chamar Leo mas por ter sido por anos o companheiro mais incrível de todos. Suas infâncias se confundiam. Tantos sorrisos, dias iluminados e essa cicatriz no dedo. Sim. Impaciência infantil: se a mãe não cooperasse pela espera do filho na rua, ele subia no muro com cacos de vidros para esperar o amigo lá de cima mesmo. Um dia tanto sangue trouxe. Os sorrisos depois pareceram estancar a ferida. Foi uma infância perfeita. Mas o garoto mudou, o amigo também, e como o tempo, nada voltou ao que era. Desde aqueles dias eles não se viam. O garoto respondeu que tudo estava bem. Leo replicou com um sorriso e fechou o portão em seguida. Preferiu assistir a um programa. Sozinho.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Ostracismo

"Talvez ela já soubesse o que eu fora pedir. O pensamento disparou rápido e agudo pela boca... e como num choque o NÃO me deixou desnorteado. Ao menos ela ousou usar sua audição. Não conheço as palavras nem o respeito. Conheço o Não... ah, e como conheço! Minha vida foi cercada por ele desde quando respirei pela primeira vez. Já tentei até escalar mas Não conseguiu. O Não sempre consegue. Para ele, é fácil até me deixar com fome na calçada. Mas às vezes acho que o Não só é assim comigo. Aquelas crianças de farda atravessando a faixa com os pais conhecem o Não? Prefiro acreditar que sim. Seria injustiça. Com certeza elas dormem numa calçada longe daqui e também pedem comida de tarde. Agora elas só estão fazendo alguma atividade. Como eu. Daqui a pouco catarei as latas menos amassadas ou o que for de metal. Eu até gostaria de ver a atividade daquelas crianças, mas é meio improvável. Certa vez eu cheguei lá perto e me jogaram um bocado de pedras. Uma acertou minha testa e hoje tenho uma cicatriz. Quem me levou para o hospital foi uma senhora caridosa. Eu sou muito sortudo, muito... ela me abraçava tão forte e o sentimento era tão bom que quando lembro ainda sorrio. Opa! Me descuidei... minha perna foi chutada. Talvez eu esteja ocupando muito espaço aqui."

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Pobre Calouro


A rolha sacou da champagne. Aplausos. Sorrisos. Parece que toda alegria da loteria perdida veio desabar nesse resultado.
-Posso ir ao banheiro, mãe?
-Volta rápido! Os convidados querem você aqui.
E ele queria os convidados longe dali. O garoto teve de desviar de muitos sorrisos até chegar ao banheiro. Sorrisos falsos... será? Não se sabe. As lágrimas no banheiro eram sim de verdade, e isso o garoto tinha certeza. Como se sabe que algo feito foi certo? Parece que a covarde da consciência só se apresenta quando não a queremos... O garoto era só dúvidas e lágrimas. E desespero. Com quem dividir? Não era isso que ele queria. Ou era? O curso deveria ser feito, não é? Sim! Não sente esse cheiro de churrasco? Não poderia mais desistir. Ou poderia? O que fazer? *Toc-Toc* "Venha, meu filho. Sua avó vai falar uma coisinha". Mais surpresas. Ele tem uma a declarar também: não quer ouvir.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Percalços inconvenientes

A senhora passava algum doce por cima do bolo. E ela havia notado a chegada do garoto. "Oi tia, a senhora tá bem?" O silêncio foi precedido por outras duas perguntas em vão. Ela parecia não ter sentimento algum. O garoto podia compará-la à mesa em que a senhora apoiava o corpo. Os olhos dela fitaram os do garoto e baixou a cabeça em seguida. "Esse bolo parece muito gostoso, tia... de que ele é feito?". A senhora preferiu lavar a faca a responder a pergunta. Ele preferiu voltar à sala a ver um estrago maior. Aquela não parecia a senhora de algumas semanas atrás que abraçava-o e enchia-lhe de carinho. - Ela sabe. Eu contei - disse a filha da senhora e amiga do garoto. "Supus" e baixou a cabeça. O garoto então voltou para casa. Foi apenas para rever a amiga e a mãe dela - grande engano.
A senhora certificou-se de que o garoto havia ido embora e então pegou a Bíblia. Rezou e rezou. Levantou-se e benzeu a casa, afirmando: "Aqui não entra esse tipo de gente". Sua religião nunca aceitou que um homem tivesse afeto por outro. E a amizade acabou por aí.